sexta-feira, 27 de julho de 2012

Rayuela (um pouco modificado)


Acordei e vi a luz do amanhecer pelas frestas. Saía tão de dentro da noite que tive como um vômito vindo de mim, o espanto de entrar num novo dia com sua mesma apresentação, com sua indiferença mecânica de sempre: consciência, sensação de luz, abrir os olhos, persiana, a madrugada.

Nesse segundo, com a onisciência do semi-sonho, medi o horror daquilo que tanto maravilha e encanta as religiões: a perfeição eterna do cosmos, a rotação incessante do globo sobre o seu eixo. Náusea, sensação insuportável de coação. Sou obrigada a tolerar que o sol saia todos os dias. É monstruoso. Não é humano.

Antes de voltar a dormir, imaginei (vi) um universo plástico, mutante, cheio de maravilhosos acasos, um céu elástico, um sol que inesperadamente falta, ou fica imóvel, ou muda de forma.

Ansiei pela dispersão das duras e inflexíveis constelações, essa suja propaganda luminosa do destino.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

PAGE, Martin.

“Eu não quero ter força para ser eu, nem coragem nem cobiça de ter algo parecido com uma personalidade. Uma personalidade é um luxo que me custa muito caro. Quero ser um espectro banal. Estou sufocado pela minha liberdade de pensamento, por todos os meus conhecimentos, pela minha abominável consciência!” (pp. 25-26)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Ninguém quer se apaixonar.


Ninguém quer se apaixonar. A paixão é um eufemismo pro sofrimento, de fato.
Mas sofrimento bonito e dramático.

“Chico
Bosco detalha como o desejo insano proporcionado pela paixão é o mesmo que investir todo o dinheiro da sua vida em uma única ação. Logicamente, quando toda a nossa vida depende de uma única pessoa e sua opinião, iremos acatar como nunca julgamos possível. Queremos agradar ao ser amado. Mais que isso: precisamos agradar ao nosso objeto de amor, dependemos de seu desejo. Claro que não é uma equação direta, há todo um Almodóvar para nos explicar.”

Até que...

“Quando amamos, ao mesmo tempo, gostaríamos de deixar de amar. Afinal, é a fonte central de sofrimento e dependência. Queremos destruir a paixão. Por isso ela é tão violenta. Isso passa muitas vezes ao largo do que pressupomos. Preferimos acreditar que somos corajosos e entregues ao amor verdadeiro. Mentira. Procuramos quem nos confirma a identidade. Desdenhamos quem nos descobre a identidade. Identidade é apenas uma idealização.”

“Escorrega, no entanto, no epílogo, afinal, não é santo: chama o acaso de imperfeição do real. Ora, o acaso justamente sequer é acessível ao homem. Só a natureza tem acesso à perfeição. Só a natureza é capaz de gerar o acaso. Nós mal conseguimos sortear a loteria e, ainda assim, porque inventamos uma indulgenciazinha. O acaso é tudo. Sorte grande a de quem abre os braços e se enlaça com o imprevisto. Pobre de quem não entendeu que desejamos, sim, controlar. Apenas não conseguimos.”

quinta-feira, 12 de julho de 2012

lavando as mãos


E sinceridade é sinal de inteligência extrema.

As pessoas mais incrivelmente inteligentes possuem uma coisa em comum, além do pessimismo:  a franqueza ácida.

Sartre, Einstein, Lispector, Woody Allen, Gertrude Stein, Julio Cortázar, Niemeyer, Scott Fitzgerald, Freud, Pamuk, Mark Twain, Lebowitz, Aristóteles, Hemingway e tantos outros, o discurso sempre trazia uma dose cavalar de honestidade.

"Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade."
Sócrates

A certeza da honestidade trás despercebida uma confiança muito grande no que se fala, e que se fodam as conseqüências, lave-se as mãos.

E falo aqui da honestidade dos nossos princípios, além das do cotidiano. Mentir algumas ações ou outras, tudo bem, somos humanos. Mas com aquilo que acreditamos.. dificílimo!
Afinal a vida é um um minuto, todo o tempo gasto pra enfeitar ou disfarçar a verdade ou os fatos é inútil. Os fatos sobressaem aos efeitos da enganação, e mais dia ou menos dia a máscara cai.

Enganar as próprias vontades, ir pelos caminhos mais curtos, se perder na imensidão da vaidade. O caminho da franqueza é sempre o mais seguro, porque é a essência, é mais simples só ser e ser de uma maneira breve e bruta.

As pessoas mais incríveis só fazem existir brutalmente, lascivamente entregam sua essência, doa o que doer.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

noção da realidade.


‘Talvez haja um lugar no homem onde se possa apreender toda a realidade. Esta hipótese parece delirante. Auguste Comte declarava que jamais se conheceria a composição química de uma estrela. No ano seguinte, Bunsen inventa os espectroscópio.’

segunda-feira, 2 de julho de 2012

desde pequena sempre achei o charme da cidade grande olhar as luzes dos vários prédios madrugada dentro pela janela, sempre gostei de admirar a vida pulsante dos 'apagares' e 'ascenderes' de luzes dos apartamentos, olhar sozinha pelo vidro os barulhos da vida noturna pacata do dia de semana.

baforar no vidro e vê-lo embaçado no frio, depois fazer espirais e coraçãozinho.

há algum sentimento muito confortante em saber que enquanto todo mundo segue a redoma e dorme, eu de propósito quebro a rotina e observo.

percebi então que quebrar a rotina é o grande triunfo da vida urbana.

se permitir não pegar o metrô naquele momento preciso ou desobedecer o despertador é um prazer inimaginável pra quem vive nessa metrópole. sentar na grama do ibirapuera num fim de tarde atribulado, tomar banho às 3 horas da manhã, acordar às 14, almoçar no sujinho às 19, não jantar.

desde pequena eu (também) sempre achei um charme andar apressada pela paulista no horário de pico, não olhar na cara de quem passa do seu lado de cabelo verde, do hare krishna que te para na outra esquina ou do repórter que te para em frente a escada da Gazeta.

sempre achei charme subir as escadas rolantes do lado direito dando passagem à esquerda, esperar o sinal verde, não pegar o papel que distribuem na rua, não olhar pra pessoa que dorme embaixo do viaduto, fumar depois da faixa amarela em pé e blasé.

seguir e desobedecer a cidade, qualquer que seja o fim (o lado que se escolhe) é tudo muito melodramático. a vida aqui, de qualquer um, é sempre uma grande novela. um movimento em falso, uma pequena atitude e caem todas as peças do dominó, em sequência.

seguir ou desobedecer, esse é o charme da metrópole.